segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Um espião no cerrado brasiliense

Mais um excelente texto do Professor Alberto Veloso. 


ALBERTO VELOSO
Geólogo e professor aposentado da UnB, trabalhou nas Nações Unidas e
é autor do livro O terremoto que mexeu com o Brasil

Publicação: 16/08/2013 04:00

As recentes notícias da existência de um programa de espionagem norte-americano sobre informações brasileiras me faz antecipar a divulgação de uma curiosa história que integra um livro que ora escrevo. Acredito ser também boa oportunidade para refletirmos sobre a vulnerabilidade de nossa nação ante o vertiginoso progresso da tecnologia da informação.

Eram os anos de 1980 e, dirigindo a Estação Sismológica da Universidade de Brasília, recebia diferentes visitantes, pois os terremotos atraem a curiosidade de muitas pessoas. Certa vez, apareceu um jovem diplomata estrangeiro se expressando em bom português — aqui ele será chamado de Mr. X. Fez perguntas sobre sismologia, interessou-se pelo sistema de registro e ouviu a reprodução sonora de um terremoto. Ao final, agradeceu e, como muitos, prometeu regressar. E voltou. Às vezes para dizer alô e outras para deixar revistas de seu país.

Um dia perguntou se havíamos registrado determinada explosão nuclear e, verificando os boletins, confirmei o fato. Em Brasília só detectávamos as mais potentes, mas indiretamente tínhamos os dados de todas as detonações, por meio de boletins fornecidos pelo Serviço Geológico Americano e distribuídos a vários centros de sismologia. Mr. X solicitou uma cópia daqueles dados e lhe dei, já que eram públicos e qualquer entidade que recebesse o boletim poderia utilizar e divulgar seu conteúdo. Nada havia de secreto, apenas teríamos de citar a fonte da informação. Mas confesso que fiquei intrigado com o pedido.

Naqueles anos, as principais potências nucleares procuravam negociar um tratado de limitação de testes nucleares, mas o horizonte continuava escuro e cheio de incertezas. O muro de Berlim permanecia em pé, os principais atores corriam para expandir seus arsenais e as explosões continuavam sacudindo as áreas de testes nos Estados Unidos e na União Soviética e, pouco menos, na China e na França.

Passado um tempo, Mr. X regressou. Desejava informações de outros dois ou três testes. Explicou que estava atendendo pedido de um professor pesquisador de seu país, que tinha dificuldades de conseguir tais dados — terremotos e explosões são as principais ferramentas que ajudam a conhecer o interior da Terra. Eu já havia visitado o país dele, conhecido cientistas e centros de pesquisas, observado coisas boas e ruins. Sua história soava fraca, mas poderia ser verdadeira. Acabei cedendo. Quando voltou a requisitar novas informações, educadamente neguei. Para mim, não estavam claros suas intenções e o destino dos dados. Acrescentei que a informação que ele buscava não era de forma nenhuma secreta, mas não seria eu a fornecê-la. Suas visitas findaram, mas a história não.

Um dia ele ligou e convidou-me para um chopinho. Conversa vai, conversa vem, depois de alguns copos, sem qualquer pudor, ele falou: “Estou autorizado a lhe pagar US$ 1.500, que poderão subir para US$ 2 mil, todos os meses. Precisamos de sua cooperação. Queremos que você forneça, rotineiramente, aqueles dados sobre as explosões atômicas”. Atônito, não acreditava no que ouvia. Parecia mais coisa de cinema, ou livro de ficção. Mas, não. À minha frente, abaixo do céu de Brasília, havia um espião de carne e osso, querendo me corromper. Ele não estava atrás somente de dados, deveria querer informações de equipamentos, projetos internacionais e outras coisas.

O simpático diplomata havia tirado a máscara. Minha surpresa virou indignação, mas reagi com calma. Medindo as palavras, mas em tom enérgico, lhe disse que a partir daquele momento encerrava qualquer possibilidade de futuros contatos. Levantei-me da mesa dizendo: “Já que você tem tanta grana, pague a conta”. Nunca mais o vi, nem nas reuniões em Genebra, quando participava da Conferência sobre Desarmamento, ou quando trabalhei para a ONU, em Viena, por sete anos.

A espionagem sempre existiu e talvez nunca acabe, pois a informação traz conhecimento e, acima de tudo, poder. Cabe aos que possuem informações sensíveis encontrar formas eficientes de salvaguardá-las. Nosso ministro da Defesa reconheceu a imensa distância que nos separa de países que dominam sistemas de vigilância da informação. Temos de reduzir este gap e não basta só patriotismo, boa vontade ou espada. Desenvolver e cultivar o saber em toda sua plenitude, com muito talento humano e adequados recursos financeiros é uma receita, pois hoje a guerra é cibernética.

Correio Braziliense, Opinião: 16/08/2013

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